Texto delicioso escrito por Luís Januário, Pediatra (assim mesmo, com "P" grande) e Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, tirado daqui (recomendo vivamente este blog):
"terça-feira, 16 de Fevereiro de 2010
Lactente persistente
Em cem anos a nossa espécie mudou. No hemisfério norte a agricultura, como existira nos séculos anteriores, acabou. As populações acumularam-se nas cidades. As doenças infecciosas foram parcialmente controladas. A mortalidade infantil baixou e aumentou a longevidade. A nova demografia dos países desenvolvidas é agora constituída por famílias onde há apenas uma criança- abaixo da taxa de substituição. A morte desapareceu do quotidiano, atirada para os hospitais. Deixou de ser natural. Há sempre um culpado - geralmente um médico incompetente ou o Serviço de Saúde. Gastam-se milhões com medicamentos inúteis. Num mundo irreconhecível, governado por funcionários cinzentos e ambiciosos filhos da classe média alcandorados a chefes de quadrilha, desapareceram os sinais das nossas baixas origens. É incrível como as crianças ainda mamam. Depois de um parto cirúrgico, em ambiente hospitalar, os bebés humanos mamam. É verdade que o fazem em mamas envergonhadas, mais ocultas que nas esplanadas. Mas mamam, os infelizes, no seu breve estádio pré-cultural, quase iguais aos seus antepassados pleistocénicos. Mamam em mamas provisórias, todas a caminho da futura copa D comum. Mamam inocentes, na obscuridade de um quarto. Se o fizessem em público as mães seriam multadas. Em público só leite em pó, só biberão, mamadeira. Biberão de tetina anatómica - como os fabricantes imaginam que era o mamilo humano abocanhado.
A lactação é tolerada, enquanto o bebé é inocente. Depois torna-se indecente. Um miúdo que mete as mãos no decote materno é um cigano. O lactente persistente não é o errante navegante que o Caetano cantou. É um animal que arrasta a mãe para a lama da biologia. Um ser neolítico. Um reliquat das berças. Uma versão reduzida do Professor do José Rodrigues dos Santos, tratando a mãe como uma Sueca. E a lactante demorada só pode ser uma neo hippie tardia, de compridas saias patchwork, fraldas de pano e falta de desodorizante.
Por cada criança, um enxoval de roupa de marca, uma cama de grades à medida, uma cadeira de transporte modelo A, um carrinho de rodas, uma saca de nécessaires, uma espreguiçadeira, uma banheira, a gama completa da linha de beleza infantil, o cartão do cidadão, o cartão de saúde, o cartão das vacinas. Não se vê a criança? Que importa. O que interessa é a ideia de criança. O sentimento de paz e de tranquilidade que a ideia de criança transporta e que a parafernália, mesmo ocultando a criança real, só por si desencadeia. A criança real é a cólica, a tortura das mamas, a insónia, a prisão doméstica. Felizmente que é rara e que passamos bem sem ela. "
"terça-feira, 16 de Fevereiro de 2010
Lactente persistente
Em cem anos a nossa espécie mudou. No hemisfério norte a agricultura, como existira nos séculos anteriores, acabou. As populações acumularam-se nas cidades. As doenças infecciosas foram parcialmente controladas. A mortalidade infantil baixou e aumentou a longevidade. A nova demografia dos países desenvolvidas é agora constituída por famílias onde há apenas uma criança- abaixo da taxa de substituição. A morte desapareceu do quotidiano, atirada para os hospitais. Deixou de ser natural. Há sempre um culpado - geralmente um médico incompetente ou o Serviço de Saúde. Gastam-se milhões com medicamentos inúteis. Num mundo irreconhecível, governado por funcionários cinzentos e ambiciosos filhos da classe média alcandorados a chefes de quadrilha, desapareceram os sinais das nossas baixas origens. É incrível como as crianças ainda mamam. Depois de um parto cirúrgico, em ambiente hospitalar, os bebés humanos mamam. É verdade que o fazem em mamas envergonhadas, mais ocultas que nas esplanadas. Mas mamam, os infelizes, no seu breve estádio pré-cultural, quase iguais aos seus antepassados pleistocénicos. Mamam em mamas provisórias, todas a caminho da futura copa D comum. Mamam inocentes, na obscuridade de um quarto. Se o fizessem em público as mães seriam multadas. Em público só leite em pó, só biberão, mamadeira. Biberão de tetina anatómica - como os fabricantes imaginam que era o mamilo humano abocanhado.
A lactação é tolerada, enquanto o bebé é inocente. Depois torna-se indecente. Um miúdo que mete as mãos no decote materno é um cigano. O lactente persistente não é o errante navegante que o Caetano cantou. É um animal que arrasta a mãe para a lama da biologia. Um ser neolítico. Um reliquat das berças. Uma versão reduzida do Professor do José Rodrigues dos Santos, tratando a mãe como uma Sueca. E a lactante demorada só pode ser uma neo hippie tardia, de compridas saias patchwork, fraldas de pano e falta de desodorizante.
Por cada criança, um enxoval de roupa de marca, uma cama de grades à medida, uma cadeira de transporte modelo A, um carrinho de rodas, uma saca de nécessaires, uma espreguiçadeira, uma banheira, a gama completa da linha de beleza infantil, o cartão do cidadão, o cartão de saúde, o cartão das vacinas. Não se vê a criança? Que importa. O que interessa é a ideia de criança. O sentimento de paz e de tranquilidade que a ideia de criança transporta e que a parafernália, mesmo ocultando a criança real, só por si desencadeia. A criança real é a cólica, a tortura das mamas, a insónia, a prisão doméstica. Felizmente que é rara e que passamos bem sem ela. "
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